acordei de um sono de poucos minutos quando o autocarro se aproximava do seu destino intermedio, altas as horas da madrugada, altas como os sonhos do mundo que trago em mim.
entrei no aeroporto com a mala por companhia, a mala grande, essa de cada nova viagem, a mesma que, como eu, carrega desta vez o peso do espaco vazio que a torna, afinal, me tornara tambem, tao mais leve.
sentei-me numa cadeira demasiado perto da porta para que me nao acordasse de arrepio o frio que vinha de fora, da rua, de fora, e por isso, por isso so, olhei em volta com meus olhos de ver, meus olhos de procura, meus olhos seguidores da cor que nao conhecem ainda.
mais longe da porta, como que resguardado, um espaco com quatro cadeiras, onde dormia uma rapariga - talvez lhe chamassem mulher - numa ponta e uma senhora de idade - bonita de idade, pude depois ver de perto - na outra.
aproximei-me sob o olhar curioso e quase inquisidor da senhora mais velha. cheguei perto, escolhi a cadeira que partilhava um braco com a sua, e sorri. o sorriso entre estranhos eh do mais bonito e humano sentir que posso viver. sei-o desde que esse homem que nao conhecia me mostrou a forca da vida, me trouxe a forca minha, sem o saber, com seu sorriso aberto. sem o qual nao sei, eu nao sei que teria feito, se nao teria desistido - eu nao sei onde estaria hoje, que pessoa seria, sequer, sem o sorriso desse homem que nao sabe sequer o que.
por isso sorrio, sempre que posso - e pode-se sempre, no fundo... - a estranhos. porque talvez um dia, quem sabe, salve meu sorriso o viver, acreditar, de alguem.
sorrio sempre.
tento.
mesmo que me nao sorriam de volta.
como a senhora de idade, bonita de idade, e lenco na cabeca.
sento-me a seu lado mesmo assim, e encosto a cabeca ah parede, preparando-me para dar ao sono o tempo que interrompi antes ate de se soltar.
levanto a cabeca quando a ouco falar. eh ela quem mete conversa comigo.
comenta a minha bagagem.
eu respondo, a vontade do sono tao vergonhosamente maior que a da fala.
pausa.
"where are you flying to?"
comeco a sentir que nao eh talvez tempo de sono - sera por acaso que me sentei a seu lado?
"portugal", respondo - minha voz com cheiro de sal soh de sentir meu mar de raiz.
ela madrid.
que viaja muito. inglesa. "londoner". a falar-me de tantas terras onde esteve, gente bonita que conheceu quando sozinha, eu que sim, que as pessoas dao tanta cor a uma terra, lembro e falo e trago-lhe-nos minha africa. meu brasil dentro, tambem. que sim, sozinha vivem-se coisas diferentes, sao outras tambem as viagens, nao estariamos aqui agora, as duas, a partilhar calor (d)e humanidade se sos nao estivessemos. eu so, a maravilhar-me em cada ruga de sua cara, tantas e tantas e mais e mais, linda, ela, linda de vida e idade, so, aqui, neste bocadinho do mundo enorme a que nao hesita entregar-se.
penso, enquanto ela fala, lembro-me de pensar nos acasos, cada bocadinho de dia que nos trouxe a estas duas cadeiras de braco partilhado, nesta partilha de tempo em que falamos como quem sabe o silencio, rimos como quem sabe a dor.
ela levanta-se para ir. demoramos as palavras de encontro e desejo de alegria - que te sejam tao boas as viagens que fazes, pequena enorme mulher, que te seja tudo a viagem de ti...
parte.
encosto a cabeca para tras e sorrio, cheia de partilhar, esquecida do sono.
vejo primeiro a bengala, ao ve-la voltar atras.
"i forgot to say.... what's your name, should we meet again?....."
trocamos nomes.
e eu sei, com ela e por ela, que a maravilha de ser livre para tudo, o que vier e o que nao, ha-de ser-me ainda maior, tao maior que a desilusao...
e eh de novo, de novo quem nao conheco, quem me traz agua na vida, e me rega o coracao.