criança.
tu não sabes
– não sabes ainda,
não sabes já –
e por isso eu vou-te contar.
eu agora vou contar-te tudo.
tu és um menino.
tu, assim, homem feito.
e és o menino com mais pais e mães que eu conheço.
porque todos os que aqui vêm e te olham
sabem e sentem a quase vergonha de não saber calar o choro que se não ouve,
as lágrimas que se não vêem,
o queixar que se não entende,
intraduzível de coragem e força.
todos
os que vêm e os que não
– a dor é tão diferente em cada um de nós... –
te queriam curar de quem não és,
embalar-te,
pegar-te pela mão e levar-te deste quarto de paredes brancas,
cada centímetro gasto pelos olhos de quem não aguenta mais ver,
cada milímetro percorrido no desespero de parar o sofrer
– essa qualquer porta secreta que alguém teima em esconder.
....
não se chora.
não choramos.
aqui.
mas a verdade
sabes
é que há dias
como hoje
em que é tão difícil não chorar...
como se as lágrimas traissem a força
que vives
tu.
chego a cadeira mais perto de ti
tu não vês, mas todos o fazemos,
todos os dias,
quando chegamos
- às vezes ser só um relevo na parede que olhas
ainda
quando abres os olhos.
que importa isso?
a vida é também.
olho-te enquanto dormes.
franzes os olhos,
fecha-los assim com muita força às vezes,
como se alguém te fizesse mal no meio da confusão
sonhada
que te tira e leva à realidade
sem caminho nenhum.
verdadeiro.
(se eu apanho esses sonhos que te não dão tréguas,
vou fazê-los
vir ver,
viver,
para saberem bem o que.)
ouço-te respirar.
lágrimas à beira de mim.
mas não choro.
não choramos.
como se as lágrimas caissem para dentro, aqui neste sítio onde se vive ao contrário.
onde se vê tanto
tão dentro...
vê-se para além do corpo, para além do tempo, esse relógio a quem partiste os ponteiros, mas que ainda assim teima em passar... ou assim ouves dizer.
falas-me de dentro do sonho.
dizes que é perto,
mas que eu não sou capaz.
tratas-me pelo meu nome.
perguntas se sei fazer as palavras.
eu digo que não.
e elas a atropelarem-se dentro
– há tanto que te quero dizer,
mas tão pouco o direito que sinto de abrir sequer a boca...
que sei eu do que?
nós só sabemos nada.
vou pensando nisto,
e tu vais dizendo
menos, menos palavras...
e eu não sei o que.
não sei mesmo como te ajudar,
tu menino,
criança exausta a quem o sonho rouba o descanso,
a quem a vida rouba a vida,
um monstro de forma curva a apoderar-se de ti a cada segundo que passa,
por mais que me sente sobre o tempo para o obrigar a deixar-se parar.
mas, olha, eu acredito em contos de fadas.
e é assim que sei que os dragões existem.
é assim que sei que os podemos vencer.
olha o labirinto do fauno – era uma criança, como tu agora....
e tu hás-de ser príncipe, também, de um reino encantado,
onde vais proibir a cor branca nas paredes,
o cheiro ao que não se sabe,
o constante passar do tempo parado.
....
alteza menina,
eu lhe garanto a derrota do dragão da dor, do gemido, da náusea, da vida que não é vida.
se calhar de uma só forma, alteza humana...
se calhar sem ser se calhar.
por maior a dor
de imaginá-lo
eu te prometo
menino
que tudo há-de mudar.