domingo, outubro 29, 2006

soror luz.

querida avó,

escrevo-te num domingo, antes de me pôr a trabalhar, porque me veio assim este repente desta vontade toda de falar-te.

tenho andado bem, avó, umas vezes mais triste que outras, outras tão cheia de tudo que me sinto enorme de vida.

tenho saudades, sim, claro, muitas de ti, mas hoje é o perto que estás, o próximo que somos, mais ainda depois de teres ido, teres tido que ir, que me faz escrever-te.

na sala tenho uma moldura com a fotografia do teu pai - desculpa tratar-te por tu, sei que não gostavas, mas sei também - assim mesmo, de saber - que isso agora já não tem importância -, outra em que estás tu, também, e sinto-me, vejo-me, protegida do que é impuro um pouco por todo lado.
porque a pureza é o que somos nós.
e tu sabes o que eu.

tenho-me alimentado bem, quero que o saibas, e tenho até escrito num caderno o que como, para saber que dou ao corpo o que ele precisa para sobreviver até ao fim nestes princípios que tenho. a minha cozinha é a tua, é assim que a vejo, os talheres, as panelas, a maneira de cozinhar são teus, teus em mim, agora. sinto-te mesmo aqui, sabes? sei que o sabes... porque estás.

tenho tido algumas dúvidas nalgumas coisas, não sei onde andam amigos de tantos anos, por que é que se deita a perder uma amizade, por que é que não há espaço, parece não haver, às vezes, para a compreensão? por que é que há-de ser a tristeza, não a alegria, a juntar-nos daqui a... não sei se meses, se anos, se o quê. não aprendemos a lição de há quase 14 anos?... (14, avó... olha lá como o tempo passa.....) não aprendemos então que a vida dos outros não dura para sempre? (com a minha própria mortalidade posso melhor que com a dos outros, ainda e sempre, sabe-lo tu tão bem agora...) que no tempo que temos não cabem distâncias? que nunca devemos?
....
sinto-me perdida no silêncio que me é dado, e ao mesmo tempo temo estar a dá-lo também. mas tentei, avó... não tentei? é onde a linha que separa o que é merecido e o que é dado sem que? e terá mesmo de existir, essa linha?

e, avó, o que é que é pior quando amigos carnívoros me deixam carne cozinhada cá em casa: não a comer porque é animal, ou comer porque é comida, e há tanta gente que?

olha, avó, se cortassem os trigos agora até podia ser que me vissem a solidão, mas viam também a luz da cor do trigo, mesmo cortado, e eu via também para o lado de lá da sombra, por isso se achares melhor, se for época disso agora, corta-os, corto-os contigo, porque há muita coisa que ainda tens de me ensinar, ajudar a descobrir sozinha, contigo.

vem cá, promete contar-me a história toda dos 10 anõezinhos que me vão ajudar a arrumar a casa, como o quarto quando era (mais) menina, para que eu a arrume tão rápido, tão mais facilmente, para depois me dizeres que são os meus dedos, as minhas mãos são quem me ajuda. tu em mim, tanto e tanto.

lembro-te muito, mesmo se a atenção tem sido focada neste estranho de agora, nesta incerteza do que vem, este limbo de medo e esperança em um, em mim, em quatro, nós todos, em tantos mais, e sinto a tua força a fazer-me, também, sorrir.

e sinto o abraço, o teu, aquele como quando te aparecia sem esperares, ida deste longe de cá, e tu a abraçares-me, tu a dizeres, como se a surpresa fosse tão recente que te fizesse falar de mim como se ali ainda não estivesse, ainda, a abraçares-me muito e a dizeres "ai, que todas as noites peço tanto por ela...".
olha, avó, resultou. o teu pedir. o teu acreditar. o de tantos outros, também. caminho, como sabes agora, tento mesmo não me desviar dessa missão, caminho para me tornar uma pessoa melhor a cada reacção que não entendo, cada palavra que magoa, cada zanga que me apetece soltar. porque é fácil ser-se bom quando se está feliz, mas quando nos toca a desilusão é tão mais difícil sermos o que de mais bonito há em nós...
por isso não desistas, não desistas de mim.

eu chego lá.


...


anda, canta-me agora um fado, aquele do miúdo, o do bravo bravissimo, enquanto trabalho.
"mas oh santo deus..." - como é que era avó?...
e a velhinha fonte, diz-se no monte, a morrer de saudade.
e tu a seres tanto
tanto
que nos trazes
ainda
a força
e a felicidade.



13 comentários:

Anónimo disse...

Amor
Como tambem me consigo identificar nessas palavras.... Estou AQUI, ta?
Ana

Anónimo disse...

é mesmo assim, só se morre quando já não se habita um coração...

xxxxx

M_d_O_M

Maria Zezinha disse...

Tão longe mas tão perto, não è nucha? "Eles" estão sempre connosco, cabe-nos a nós deixá-los ir sem desgosto, deixá-los seguir o caminho da luz...Mas de cada vez que pensamos "neles" é uma prece por cada um...Vamos pensar neles com alegria e acreditar que um dia vamos encontrá-los, mais uma vez!!! Um beijo grande menina linda.

ricardo disse...

:)

bonito...muito bonito!

beijos e até dpois
=OP

ps-qto à pergunta sofre o filme...não conheço os teus gostos cinéfilos, mas eu achei o filme interessante ;)

Alexandra disse...

fiquei tão comivida...a minha avó é tudo para mim e esta tua carta lembrou-me isso

bj

Anónimo disse...

Gostei tanto de ler...
a minha tb partiu faz 14 anos em Janeiro e tb gostava particularmente desse fado, A lenda da Fonte.

Marta disse...

E o tempo que passa e as coisas que ficam, os tachos, os talheres, tudo continua a funcionar e o tempo a passar, menos elas. Está muito bonito!

Rita Coelho disse...

Lindo ;)

Anónimo disse...

Que uma brisa leve o meu beijinho até ti.
Cindy

Anónimo disse...

É tão bomito ler o que escreveste. Admirei sempre muito a tua avó - no meu entender, uma mulher fora do tempo, mais à frente. E quanto isso é difícil de ser entendido por outros. Guardo dela muitos bocadinhos das suas mãos tão habilidosas, mas especialmente uma carta que me escreveu e me deu tanta força. Um beijo, querida tia Luz.
vona

Sandrinha disse...

Que lindo minha menina!

joaninha disse...

:')

Dijambura disse...

Também continuo a falar com a minha e a perguntar-lhe coisas todos os dias, tenho saudades do seu toque, das nossas danças, dos nossos mimos, dos nossos desvarios, das nossas javardices deliciosas na cozinha...e ainda me doi.. mas apesar de tudo sei que ela está em mim, que eu sou a continuação da sua pele, do seu espirito e sei que posso continuar a falar com ela! Adorei as tuas palavras e partilho algumas das minhas contigo!
Abraços e beijos