querida avó,
escrevo-te num domingo, antes de me pôr a trabalhar, porque me veio assim este repente desta vontade toda de falar-te.
tenho andado bem, avó, umas vezes mais triste que outras, outras tão cheia de tudo que me sinto enorme de vida.
tenho saudades, sim, claro, muitas de ti, mas hoje é o perto que estás, o próximo que somos, mais ainda depois de teres ido, teres tido que ir, que me faz escrever-te.
na sala tenho uma moldura com a fotografia do teu pai - desculpa tratar-te por tu, sei que não gostavas, mas sei também - assim mesmo, de saber - que isso agora já não tem importância -, outra em que estás tu, também, e sinto-me, vejo-me, protegida do que é impuro um pouco por todo lado.
porque a pureza é o que somos nós.
e tu sabes o que eu.
tenho-me alimentado bem, quero que o saibas, e tenho até escrito num caderno o que como, para saber que dou ao corpo o que ele precisa para sobreviver até ao fim nestes princípios que tenho. a minha cozinha é a tua, é assim que a vejo, os talheres, as panelas, a maneira de cozinhar são teus, teus em mim, agora. sinto-te mesmo aqui, sabes? sei que o sabes... porque estás.
tenho tido algumas dúvidas nalgumas coisas, não sei onde andam amigos de tantos anos, por que é que se deita a perder uma amizade, por que é que não há espaço, parece não haver, às vezes, para a compreensão? por que é que há-de ser a tristeza, não a alegria, a juntar-nos daqui a... não sei se meses, se anos, se o quê. não aprendemos a lição de há quase 14 anos?... (14, avó... olha lá como o tempo passa.....) não aprendemos então que a vida dos outros não dura para sempre? (com a minha própria mortalidade posso melhor que com a dos outros, ainda e sempre, sabe-lo tu tão bem agora...) que no tempo que temos não cabem distâncias? que nunca devemos?
....
sinto-me perdida no silêncio que me é dado, e ao mesmo tempo temo estar a dá-lo também. mas tentei, avó... não tentei? é onde a linha que separa o que é merecido e o que é dado sem que? e terá mesmo de existir, essa linha?
e, avó, o que é que é pior quando amigos carnívoros me deixam carne cozinhada cá em casa: não a comer porque é animal, ou comer porque é comida, e há tanta gente que?
olha, avó, se cortassem os trigos agora até podia ser que me vissem a solidão, mas viam também a luz da cor do trigo, mesmo cortado, e eu via também para o lado de lá da sombra, por isso se achares melhor, se for época disso agora, corta-os, corto-os contigo, porque há muita coisa que ainda tens de me ensinar, ajudar a descobrir sozinha, contigo.
vem cá, promete contar-me a história toda dos 10 anõezinhos que me vão ajudar a arrumar a casa, como o quarto quando era (mais) menina, para que eu a arrume tão rápido, tão mais facilmente, para depois me dizeres que são os meus dedos, as minhas mãos são quem me ajuda. tu em mim, tanto e tanto.
lembro-te muito, mesmo se a atenção tem sido focada neste estranho de agora, nesta incerteza do que vem, este limbo de medo e esperança em um, em mim, em quatro, nós todos, em tantos mais, e sinto a tua força a fazer-me, também, sorrir.
e sinto o abraço, o teu, aquele como quando te aparecia sem esperares, ida deste longe de cá, e tu a abraçares-me, tu a dizeres, como se a surpresa fosse tão recente que te fizesse falar de mim como se ali ainda não estivesse, ainda, a abraçares-me muito e a dizeres "ai, que todas as noites peço tanto por ela...".
olha, avó, resultou. o teu pedir. o teu acreditar. o de tantos outros, também. caminho, como sabes agora, tento mesmo não me desviar dessa missão, caminho para me tornar uma pessoa melhor a cada reacção que não entendo, cada palavra que magoa, cada zanga que me apetece soltar. porque é fácil ser-se bom quando se está feliz, mas quando nos toca a desilusão é tão mais difícil sermos o que de mais bonito há em nós...
por isso não desistas, não desistas de mim.
eu chego lá.
...
anda, canta-me agora um fado, aquele do miúdo, o do bravo bravissimo, enquanto trabalho.
"mas oh santo deus..." - como é que era avó?...
e a velhinha fonte, diz-se no monte, a morrer de saudade.
e tu a seres tanto
tanto
que nos trazes
ainda
a força
e a felicidade.